domingo, 28 de dezembro de 2008

Peço licença a Hildinha!!!!

Licença para publicar o texto lindo.
Hildinha é uma pessoa querida que convivi na adolescência aqui em Ilhéus e que alçoou vôos para outros céus, nunca esquecendo,porém, das lembranças e dos contares da cidade que nasceu.




PARA ONDE VAI MINHA MÃE?
Hilda Lucas

Para onde vai minha mãe quando se ausenta em brumas, nevoeiros e despedidas intermitentes? Para onde vai minha mãe, com olhos abertos insondáveis, de corpo presente inerte e alma fugidia? Para onde vão nossos velhos quando começam a sair das nossas vidas e voltam para mundos impenetráveis, perdidos, inventados?
É muito triste ver minha mãe indo embora. Tento segurá-la, não há como. Existem muitas certezas nos delírios e nos devaneios. Tudo é real para quem mora no limiar dos mundos, nas fronteiras frágeis entre o esquecimento e a razão. O tempo pára de existir. O passado é muito mais presente, o hoje é confuso e o futuro não está nos planos. Talvez a eternidade, não o amanhã.
Que sonhos têm nossos velhos, quando sorriem serenos ou encolhem-se amedrontados? Que pensamentos tem minha mãe quando traz o olhar perdido e faz-me sentir invisível, inexistente, expulsa do seu universo particular?
Pois quando olho seu rosto, sua expressão vaga, buscando imagens desconexas e palavras que insistem em não vir, vejo o quanto esgarçado está o laço que une, o fio que conecta, o nexo do passado recente. Às vezes sei que minha mãe não me encontra no meu rosto olha através de mim, ou então me vê como se eu fosse uma desconhecida para logo depois, por estranhos e viscerais motivos, dizer que sou muito simpática ou assustar-se por me ver ali, ao seu lado, como se tivesse acabado de chegar. “Minha filha, que bom que você veio!”.
Nesses instantes sinto-me convidada para sua festa de mortos e vivos, para seus salões enfeitados com guirlandas e reminiscências; posso penetrar suas paisagens imaginárias, conheço suas sombras e ouço as mesmas histórias da sua infância e juventude, contadas nos mínimos detalhes, na mesma seqüência e com a mesma emoção de sempre.
Nossos velhos são seres fluidos, intangíveis que nos mostram seus avessos, suas manias, suas implicâncias e preferências sem cerimônia por que os códigos de convivência social não servem para quem está de partida. São seres frágeis, espectrais, que expõem sua nudez de pergaminho sem pudor por que o obsceno e o feio não cabem no mundo dos que já se despiram das cascas, dos vernizes.
São seres ranzinzas, cansativos, perdidos em pequenas obsessões, lamúrias e rotinas irritantes. São tiranos que gritam, fazem má-criações e implicam com tudo. São crianças enrugadas, assustadas com manias de perseguição, síndromes de conspiração e medo da miséria e da solidão.
Para onde vai minha mãe, quando fala com os mortos e os desaparecidos; quando conta suas histórias de menina com trejeitos e brejeirices de menina, vagando entre esferas, cruzando fronteiras, planando sobre seu mundo infantil como um pássaro que voa de olhos fechados.
Com que cara, com que roupa, como será que minha mãe se apresenta quando nessas viagens reencontra seus pais, avós, amigos e irmãos mortos? Com que olhos ela vê seus amores vividos ou não, como será que ela se vê, vendo as pessoas que povoaram sua vida e se perderam no tempo?
Às vezes ela volta com um trunfo, um souvenir. Pode ser uma música, uma sensação, o gosto de um doce... Ela volta rindo, satisfeita como o mergulhador que retorna à superfície com uma pérola na mão.
Outras vezes ela traz feridas abertas, mágoas revividas, rancores. Volta arredia, amarga como se tudo tivesse acontecido naquele instante. Então, ela chora as mesmas lágrimas que já foram derramadas e sente as mesmas raivas que já foram expurgadas. O gosto de fel é o mesmo e a dor lateja igual, perpetuada.
Onde está minha mãe quando esquece meu nome mas recita salmos e sonetos inteiros como uma possuída, entregue a um fluxo inesperado e borbulhante da memória. De onde ela vem quando declama com eloqüência em arroubos de colegial os poemas de Castro Alves; as orações infantis e os hinos escolares.
De onde vem minha mãe trazendo frases poderosas como: “São tantos os pensamentos na minha cabeça querendo ser proferidos que eu me sinto enlouquecer”, “Cada vez que eu fico assim, confusa, eu passo a enxergar com maior clareza”, ou “A vida é um jogo, implacável e belíssimo, e as piores batalhas são as solitárias travadas no coração”, e finalmente, “Todos queremos ser felizes mas só os sábios o são”. De onde retorna minha mãe com sãs filosofias?
O que sentem nossos velhos nos momentos terríveis de lucidez, quando percebem-se confusos, partindo em pânico, por que tudo é estranheza e esquecimento, impotência e fragilidade; tudo é novo, hostil e as pessoas são caras sem nome sem significado? Quanto assusta penetrar, sozinho e vivo, o desconhecido? Ah, mãe! Quem é você quando eu não lhe reconheço? Quem sou eu se não for sua filha? Quando nossos velhos desaparecem nas brumas, a quem amamos?

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